Sandra Eliane Radin
Início do mês de junho, os preparativos para as festas juninas começavam a ganhar espaços cada vez maiores nas casas, nos clubes, bares, escolas e nas praças. Todos montavam seu arraial. O comércio brindava seus clientes com vatapá, caruru, pé de moleque e outras iguarias próprias das festividades que homenageiam no dia treze, Santo Antonio - o casamenteiro -, dia vinte e quatro, São João, e ainda São Pedro e São Paulo, no dia vinte nove.
Fui criada em uma família que sempre saiu nas quadrilhas, cultivou a tradição e ficou conhecida e respeitada pelas tradicionais festas juninas. Meu bisavô, segundo o que me contaram, já saía nas quadrilhas. As da época eram muito diferente das de hoje, mas tinham fogueiras, músicas, danças e todas aquelas iguarias feitas a base de milho, na sua maioria.
Uma enorme fogueira sempre foi erguida em uma área na fazenda reservada para este fim. Já se podia ver o movimento dos empregados da fazendo para montarem o arraial e a fogueira. Meu pai havia prometido que a fogueira daquele ano seria tão alta, mas tão alta, que seria vista de Itabaiana, passando em Areia Branca e chegando em Aracaju.
Faria com que os fazendeiros da região morressem de inveja. Teria muita comida, muita cerveja gelada, forró e alegria até o dia clarear. Seria um São João inesquecível, dizia ele.
Minha mãe corria de um lado a outro dando ordens, ultimando os preparativos, e sequer imaginava o quanto eu estava precisando de um pouco de atenção. Ansiava por conversar com ela, com privacidade e tempo. Não lembro dela ter me lançado mais do que cinco ou seis olhares e algumas econômicas palavras desde o dia que voltei do Rio de Janeiro, onde morava para estudar. Minha intuição me sinalizava que ela estava a me esconder algo.
Os dias foram passando e chegamos no dia da tão esperada festa de São João. Meu pai contratou forrozeiros de Campina Grande, mandou vir convidados de toda a parte. Vieram políticos, autoridades religiosas, seus compadres, seus afilhados, amigos, vizinhos e quem mais desejasse.
Transformou nossa propriedade numa cidade. Mandou montar barracas, contratou banheiros químicos, construiu pequenas cabanas, banheiros com chuveiro, churrasqueira ao ar livre. Contratou um empresa para o projeto de iluminação, outra para as construções.
Era uma multidão. Pessoas surgiam de todos os lados e por vezes sentia-me uma intrusa em minha própria casa. Eu havia me tornado uma desconhecida, apenas mais um peça na megalomania do meu pai, com o aval da minha mãe.
Eu, que sempre gostei desta época do ano, do encontro com os primos, do abraço dos meus tios, das quadrilhas em família, de ver o brilho no olho dos meus avós enquanto dançávamos, soltávamos fogos de artifício e depois jantávamos todos juntos naquela mesa enorme da nossa sala de jantar, não consigo sentir a mesma alegria hoje. A nossa tradicional festa junina familiar foi transformada num evento de poder e política.
Acordei sentindo meu estômago embrulhado, uma fisgada no meu útero e um ligeiro desconforto, o que fez com que eu ficasse deitada toda a manhã. Fiquei a pensar sobre a minha vida, desde a minha infância povoada pelas histórias, lendas e causos contados pela minha avó paterna. Ela morava conosco ou nós morávamos com ela. Nunca soube ao certo.
Consegui resgatar na minha memória o dia em que ela me contou sobre a origem da fogueira no São João. Disse-me ser a fogueira o sinal de que Santa Isabel enviou a sua prima Maria, mãe de Jesus, quando seu filho São João nasceu. Eu tinha na época sete anos. Acabara de fazer no dia dezessete de junho.
Falou na teoria que dizia ser este dia já comemorado na antiguidade. A igreja católica, segundo a avó, incorporou esta festa ao seu calendário, pois sabia ser este um ótimo caminho para catequizar seu rebanho. Mudou uma palavra aqui, outra acolá, deu um colorido diferente e a história original se perdeu nos tempos.
Inclusive, disse-me ela, o nome do sexto mês do calendário gregoriano tem sua origem na deusa romana Juno, esposa de Jupiter.É símbolo do casamento, da fertilidade e da proteção feminina.
Ah! Como eu era feliz e despreocupada naqueles tão distantes dias. Contava com o cuidado e proteção da minha amada avó. Depois que ela se foi, me perguntava: o que vai ser de mim? Quem vai me proteger? Quem vai enfrentar meu pai?
Sim, ele, embora um verdadeiro coronel nordestino, sempre baixou a voz, encolheu os ombros e, sem discutir, acatou as ordens da minha avó. Com ela nunca conseguiu exercer a sua tirania e machismo.
Que mulher forte era ela. Como eu gostaria de ser parecida.
Fui abduzida de minhas lembranças com o chamado de minha mãe para eu me arrumar e descer. Os convidados estavam a perguntar por mim.
Contrariada, vesti a roupa que meus pais haviam comprado. Eu precisava estar vestida a altura do nome da família, foi a justificativa que minha mãe me deu.
Queriam era me exibir como um troféu ou me leiloar para o fazendeiro ou político que desse o maior lance, para si próprio ou talvez para um filho retardado, imprestável.
ml.Comecei a arquitetar um plano, não sabia se daria certo, mas não poderia permitir que decidissem minha vida. Não era loucura minha. Havia escutado uma palavra aqui, ouvido um cochicho, um deboche, um olhar de piedade. Só precisei juntar o quebra-cabeças. Meu pai pretendia arrumar um marido para mim. Coisas do coronelismo ainda reinante no país.
Se ele esperava me pegar de surpresa, provaria do próprio veneno. Seria surpreendido. Cheguei a sentir um certo alívio por não ter falado com minha mãe. Ela bem que estava merecendo ser surpreendida também pra deixar de dizer amém para tudo que meu pai queria e ordenava. Invoquei todos os santos, deusas e minha avó para me inspirarem e me guiarem naquela noite de São João.
Eu iria pular esta fogueira, ah se iria…
Fiquei atenta o tempo inteiro. As pessoas circulavam, dançavam, e eu atenta aos movimentos dos meus pais.
Senti um frio percorrer a minha coluna quando a mesa ao ar livre começou a ser montada. Foi como se Juno ou minha avó tivessem feito disparar um alarme interno a anunciar que a hora era chegada.
Os empregados, todos de uniformes brancos engomados, depositavam sob a mesma caruru, mucunzá , canjica, pamonha, cuscuz, carne de sol, bolo de milho, de macaxeira, cocada, queijada.
Meu pai, afoito, convidava os convidados importantes a tomarem lugar a mesa. Chamou a mim e a minha mãe.
O sanfoneiro tocava Xote das Meninas, de Luiz Gonzaga, acompanhado pelo coro desafinado dos presentes
“Ela só quer, só pensa em namorar
Ela só quer, só pensa em namorar
De manhã cedo já esta pintada…”
Meu pai, com um gesto, silenciou a todos, incluindo o sanfoneiro. Levantou o seu copo. Coronel Alvarez o seguiu, convidando a todos para brinde para celebrar a união das duas famílias.
As pessoas se entreolharam, me olharam.
Pedi ajuda de todos os santos. Senti uma lufada de vento a me encorajar.
Suando frio, num salto, gritei:
— Para, não diz mais nada pai. Tu vais se arrepender! — ameace— O quê? — esbravejou ele
Lívido de raiva, mandou eu calar a boca. Chamou o filhote de coronel, Anibal. Rapaz desprovido de atrativos e de personalidade, mandalete do seu pai, o coronel. Alvarez.
Pegou com força a minha mão, pegou a mão do Anibal e disse:
— O casamento de vocês será daqui a dois meses. O tempo de sair os proclames e tu preparares o enxoval. O compadre e eu já acertamos tudo. Vocês vão morar aqui na fazenda. Estou ficando velho e o Anibal vai assumir a administração dos negócios.
Seguiu falando sem se importar com a minha dor e a minha vontade, mas o fato de me tratar como uma fantoche fez com que eu reagisse com uma potência que eu própria desconhecia.
Dei outro grito com mais força que o primeiro. Tanto quanto a fogueira foi vista de Itabaiana, passando por Areia Branca, chegando a Aracaju, meu grito fez a mesma façanha: foi ouvido com toda a força de meu ser.
— Estou grávida, estou de três para quatro meses. Ele vai casar com uma mulher grávida de outro? O que vais fazer agora, papai?
Vi ele levar a mão ao peito, retorcer os lábios, ficar branco como uma folha de papel.
Saí correndo e me tranquei no quarto.
O silêncio se fez.
Ele foi às pressas de ambulância para o hospital.
Foi a última vez que o vi.
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