Sandra Eliane Radin
Olho para os lados e vejo que as mães das minhas amigas estão, uma a uma, caindo tal peças de um tabuleiro de xadrez. Fico triste e penso: a hora de todas está chegando, inclusive a dela, da minha mãe. Num vaivém de sentimentos ambivalentes, ora penso que ela merece este descanso, pois já percorreu uma grande jornada, ora fico com o coração apertado por saber que logo não a terei mais por perto.
Procuro a minha genitora mas ela parece não mais habitar aquele corpo sem forças, quase sem vida. Corpo vivido em quase um século, gasto pelas dores, tempo e pelas alegrias e conquistas acumuladas, pela chegada dos netos e bisnetos que se orgulha de ter. Não sei se conseguirei dar conta da dor que me mobiliza na certeza da ausência, da separação pela morte. Quando escuto o som de pés se arrastando pelos cômodos da casa, sinto tristeza por saber que a hora da despedida se aproxima.
Não consigo encontrar minha mãe entre as rugas e flacidez daquela senhora decrépita. Aquela não é a mãe da minha infância nem da vida adulta que eu podia contar sempre. Como não percebi isso há mais tempo? Quem a aprisionou neste corpo já gasto?
Procuro a mulher de cabelos negros ondulados, olhos vivazes, personalidade forte, determinada e ativa. Não consigo encontrar. A imagem que guardo dela é de cabelos arrumados com esmero, saia pregueada estampada, blusa branca, sentada com seus cinco filhos pequenos e meu pai, em uma mesa de restaurante. Onde ela se escondeu?
Quem é aquela idosa que transita e geme deixando sinais e marcas não só nas paredes mas no meu corpo e alma? Como não percebi isso. Quem foi se apropriando da vida da minha mãe e ocupando espaço na minha vida e na de meus irmãos, a tal ponto que fomos esquecendo da mãe forte, cuidadora e presente que tínhamos?
Temos de cuidar dessa senhora de idade avançada que precisa ser alimentada e acariciada.
Sinto um sentimento de vazio, uma sensação de perda de alguém que já partiu sem ter experimentado a morte. Perda que pressinto. Não entendo essa impermanência.
Percebo o corpo o qual abduziu minha mãe estar dando sinais claros do seu fim. Ele oscila feito uma vela ao vento, trepida, vai de um lado ao outro sem nenhum equilíbrio ou senso de direção. Dá sinais da finitude tanto da vela como do homem. Eu a vejo se indo aos poucos, até que sua chama apagará de forma derradeira.
Assim é que tenho vivenciado a partida da minha mãe, aos poucos, lenta e sem que eu possa nada fazer, apenas aceitar a minha impotência.
Aquele é um corpo que pede passagem, é um corpo que diz que está cansado e precisa ir embora, seu tempo chegou ao final. Sem pronunciar uma palavra, dá demonstrações claras de sua ruptura com a vida, diz já se encontrar em um outro lugar.
Minha mãe viveu rodeada de afetos, de familiares e de amigos, que agora se reduzem a poucas pessoas. Foram se escasseando, diminuindo com a passagem do tempo. Vínculos foram rompidos pela morte, pela distância ou pela não presença. Será que em suas memórias essas pessoas ainda estão presentes?
Vejo um fio de vida naquele corpo desgastado, naquele rosto cheio de sulcos e rugas. Na expressão, misto de saudades e tristezas. O fio de vida pede permissão para também partir.
Fico a me perguntar se ela sabe para onde está indo, se sentimentos e emoções estão a povoar seus pensamentos ou apenas encontra-se no vazio existencial.
A roda da vida é a mesma roda da morte e gira. Gira sem parar.
Chegar e partir fazem parte do mesmo ciclo.
Esse é o grande paradoxo da existência.
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