Sandra Eliane Radin
“Quanto tempo é preciso para a gente ser a gente mesmo? E eu gostaria de perguntar isso a todos os que não precisam trocar de sexo. Quantos anos, décadas, para estar em conformidade? Conformidade de corpo, conformidade de sonhos, conformidade de pensamentos, com aquilo que somos profundamente, esta matéria bruta da qual sobram uns poucos restos antes que ela seja forjada, alisada, remendada pela sociedade, pelos outros e seus olhares, nossas ilusões e nossas feridas.” (Página 75).
Ponto Cardeal nos brinda com um romance que trata de uma temática pouco explorada e entendida ou seja, a transexualidade. Esse tema ainda tão tabu através da obra de Récondo faz com que reflitamos sobre todas as complexas e intrincadas questões externas e internas pelas quais as pessoas trans se defrontam.
Talvez seja esse o grande mérito da autora que peca em alguns momentos por não aprofundar os conflitos internos pelos quais passa o protagonista Laurent/Lauren, tornando até certo ponto superficial e simplória a transformação pela qual o/a personagem passa.
Sim, Lauren porque desde sempre Laurent se viu como mulher em um corpo de homem. Se sentia estranho, desconfortável dentro das roupas do “seu gênero”. Era feliz quando se vestia com as roupas da mãe mesmo que escondido num canto qualquer da casa.
Adulto seguiu correspondendo as expectativas sociais. Constituiu família, é marido e pai, tem um emprego onde é respeitado e reconhecido pela sua competência. Homem de classe média com uma vida comum e muitas vezes desinteressante e entediante. Sua válvula de escape é Mathilda, personagem que criou para extravasar seu eu feminino. É como mulher que encontra seu lugar, que seu corpo lhe fala da possibilidade de se sentir inteiro e completo. É onde toma consciência de sua verdade. É mulher transexual.
Récondo inicia a narrativa com Mathilda se desnudando escondida dentro do carro permitindo que Laurent assuma o comanda da sua vida. Com essa cena rica em simbolismo Lauren sufoca sua real identidade, aprisiona seus desejos junto com Mathilda e assume a identidade que todos esperam dele/dela, - Laurent -. Aquela que é conhecida e aceita socialmente.
Para mim essa cena é das mais impactantes do livro. A protagonista nos é apresentada com todos seus conflitos, sentimentos ambivalentes, dúvidas, incertezas, medos e sua aparente conformidade com o papel que vem desempenhando e o desejo latente de navegar ao encontro de si mesma.
Poderia citar outras tantas cenas que revelam a empatia e a sensibilidade da narrativa de Récondo tal a que duas mulheres deitadas na cama, corpos e lábios próximos conversam sobre o momento pelo qual estão passando. O que era antes um homem e uma mulher como casal, agora se vêm como duas mulheres com sororidade e continência uma com a outra. Apenas duas amigas, a cumplicidade instalada.
A autora faz um recorte narrativo onde o processo de encontro consigo mesmo/a, sua transformação, coragem para enfrentar família, colegas e amigos e feita com uma linguagem leve. Se vale inclusive, da alternância entre os pronomes masculino e feminino quando se refere ao protagonista Laurent, nos contagia e faz com que nos coloquemos no lugar do outro.
O romance é curto (176 páginas) e de leitura fluida. Prende a atenção do leitor já na primeira cena. Seu mérito foi o de dar visibilidade a uma temática pouco discutida e conhecida. Excelente porta de entrada para pensarmos sobre a questão da transição mesmo que tenha pecado em alguns pontos.
Recomendo a leitura
Léonor Recondo - é uma romancista-violinista francesa. Ponto Cardeal venceu o prêmio France Cultural Télérama.
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